Tuesday, 3 December 2013

Sem poção mágica, a coisa pode correr mal

O primeiro-ministro da Ucrânia - um russo, que não fala ucraniano, e que manda num país que está nos limites geográficos de uma Europa que se precisava de abrir e expandir antes que se consuma numa lógica autofágica - chama-se Azarov. O governador do Banco Central do Chipre na apogeu do caos financeiro chamava-se Panicos. A Europa parece-se cada vez mais com uma aventura do Asterix.

(PS: nem de propósito, sobre lógicas autofágicas, José Gomes Ferreira diz que "a austeridade é um remédio que tem de se tomar até ao fim". é como a cicuta, portanto. se não se tomar até ao fim, pode não fazer efeito)

Monday, 2 December 2013

Da dependência

Nenhum país é independente. Ninguém é independente. A questão nem é honesta se for colocada nestes termos. Todos somos dependentes de alguma coisa. E, acho eu, ainda bem. Não temos um problema de independência, porque não existe tal coisa como um problema de independência. Temos, sim, um problema de igualdade. Grave. Aliás, temos um problema de desigualdade. O problema não foi termos perdido a soberania. O problema foi termos perdido a soberania para com países perante os quais não nos comportamos como iguais. 

Por isso, a questão do feriado parece-me de relativa pouca importância. 

Tuesday, 5 November 2013

Gaile


Tinha uma data de coisas para dizer, mas esta história, não resumindo, atalha. Esta rapariga é a Gail Russell. Fez um filme de terror nos anos 40, chamado The Uninvited, que eu vi neste fim de semana. No filme, faz de uma rapariguinha tímida e assombrada pelo passado. Na vida real, era uma rapariguinha tímida e, de certa maneira, assombrada pelo futuro. Era de tal maneira tímida que precisou de começar a beber para conseguir representar aquele papel de rapariga tímida. Vai daí desenvolve um novo vício que levaria à sua morte. Há que ver isto como é: há certas coisas que, sendo nossas, não nos deixam fazer de nós próprios. 

Friday, 1 November 2013

Ainda Carrilho

Ontem, durante uns minutos, o DN permitiu a publicação de comentários à crónica semanal de Carrilho. E um deles começava assim: “Cale-se, seu abusador de mulheres!”. Tudo neste comentário, anónimo, me parece absolutamente brilhante. É brilhante nos termos. O “cale-se!”, que é ao mesmo tempo injurioso e formal, é agressivo mas é cordato, é pessoal mas é dito por um anónimo. O “abusador”, aportuguesamento recente do abuser, denota uma aculturação anglo-saxónica, todavia incompleta, porque utilizado para denegrir publicamente a vida privada de alguém. O “mulheres” demonstra precisão – eu sei que é mais do que uma – e indefinição – mas quantas são?, luz e bravura de quem volta da caverna platónica para esclarecer o mundo, mas também escuridão e derrotismo de um Turner, de quem aceita as nuances de um homem face ao desconhecido, face ao sublime.

Tem ponto de exclamação mas é questionável, é preciso mas incompleto, é irado mas tem pausa. E é o melhor exemplo que posso encontrar para o que os pós-modernos chamam a “hiper-realidade” deste caso Carrilho. Neste sentido, a vida de Carrilho é mais filosófica e atual do que a sua filosofia.

Tuesday, 29 October 2013

Por quem os preços dobram

Uma empresa monopolista não pratica o preço que quer - pratica qualquer coisa como o preço mais alto que as pessoas estão dispostas a pagar. Quando essas pessoas estão mais pobres, a empresa monopolista, se quiser continuar a ganhar dinheiro, baixa o preço. E pode ter de baixar bastante. Uma empresa num mercado muito concorrencial também não pratica o preço que quer - pratica o preço que os outros praticam, e todos praticam um preço baixo. Como este preço já está próximo do custo, não tem muita margem para baixar para responder ao facto de as pessoas terem menos poder de compra.
 
Um indício que fala montanhas sobre o grau concorrencial de muitos setores em Portugal é o que está a acontecer aos preços de uma data de produtos. Eu sei que pessoas mais pobres também significam custos do trabalho mais baixos, o que poderia dar maior margem a setores concorrenciais para baixar preços. Mas há claramente setores onde os preços estão a cair muito mais que outros, e diria que os setores onde os preços estão a cair mais até utilizam relativamente pouco trabalho.
 
A seguir.

Wednesday, 23 October 2013

Depende do ponto de vista, ou o fim da Utopia

Fui à Almedina à procura da Utopia - não há, não há em lado nenhum, parece que só na Gulbenkian - e perguntei como estava a correr a venda do livro do Sócrates. O livreiro respondeu que dependia do ponto de vista. Depois é que me lembrei o quão antagónica é a imagem que as pessoas têm de Sócrates. Não podia ter respondido outra coisa: depende do ponto de vista! Voltámos, em boa medida, ao tempo da anedota do barbeiro que, de lâmina afiada, pergunta ao freguês o partido político, e ele responde: o mesmo que o seu. O mesmo que o seu, ou o fim da Utopia nas falidas livrarias portuguesas.

Sunday, 20 October 2013

As coisas que importam

Uma entrevista brejeira, variando entre o mau gosto, a falsa intimidade e um realismo político assustador; a primeira entrevista política em muitos anos que li de um trago, com recortes absolutamente certeiros e maior política em cada "merda" dito do que em cada palavra deste orçamento de estado. E isto é muito, muito importante, para a história das leituras que eram feitas em 2011 sobre a natureza da atual crise: "... decidiu-se que Portugal não ia pedir ajuda. Houve uma intervenção manhosa do primeiro-ministro da Holanda e eu, muito irritado, até lhe pedi que dissesse quanto é que Portugal lhe devia, porque não estava para ficar-lhe a dever um tostão nem aturar-lhe o calvinismo reles."
 
A ser lido pela direita patrioteira de cócaras perante a Europa. A mesma direita que, em 2011, deslumbrava-se com a vinda do FMI e que, para hoje esconder o seu fracasso, prefere declarar guerra ao seu próprio povo. A direita que prefere manter a farsa da alegada culpa desse mesmo povo a admitir a sua imensa ignorância sobre a natureza desta crise.

Friday, 18 October 2013

Lady Mary

"Yet who would have thought the old man to have had so much blood in him". E, ainda assim, quem é que diria que o velhote tinha tanto sangue dentro dele? Ninguém me avisou que um homem era todo este sangue! Vocês sabiam? Ninguém mo disse. Achei que a morte era apenas um verbo, nunca um adjetivo. Mato-o e ele deixa de ser. Agora matei um rei mas não me tornei rainha. O sangue dele não pára de jorrar: o homem já morreu há tanto tempo e o sangue nunca mais acaba. 

Disse hoje Maria Luís Albuquerque, após os cortes gizados, que, "neste momento, tal como os portugueses, tem pouca margem para poupar". Tal como os portugueses, com 4500 euros mensais de ordenado, ela não tem dinheiro suficiente para pôr de lado. Curioso que ainda não se interrogue: mas quem pensaria que estes portugueses tinham tanto sangue dentro? Diz antes: o sangue destes portugueses não chega; nem me permite poupar. 

Wednesday, 16 October 2013

Caras de pau

Um membro do parlamento (sim, vai à inglesa que a coisa é grave) acaba de dizer na tv que este foi o corte na função pública mais reduzido desde 2010. Pois. Olha, por comparação com 2010, um funcionário público competente, a meio da carreira, perdeu pelo menos 26% do seu rendimento, em termos nominais - qualquer coisa como um terço, contando com a inflação. Assim de repente: um subsídio em duodécimos comido pelo imposto extraordinário (7%); o prémio de produtividade (7%, tipicamente um salário mensal, dependendo naturalmente dos serviços) e 12% agora com este novo corte. Estou a dar de barato o congelamento de carreiras.

Um terço - a que se soma o aumento dos impostos sobre o consumo, da utilities e dos transportes públicos. Quanto é mesmo que, em 2011, a malta me dizia que o rendimento disponíveis dos funcionários públicos ia desvalorizar numa eventual saída do euro, em consequência de uma negociação musculada com os credores internacionais? 

Sunday, 6 October 2013

As ruínas do romantismo podem ser românticas?

Estive em Ronda, a possibilidade urbana e turística do romantismo - labirintos do homem construídos no topo de um rochedo, com 40 quilómetros de raio de isolamento -, e sentei-me no McDonnald's a beber um café. À minha frente, pude apreciar o avançado efeito das térmitas da moda nos calções de ganga das rapariguitas da cidade, e pensava que, até há pouco tempo, eu teria de fazer um enorme esforço para aceder àquelas partes do corpo feminino. E nem assim me sinto menos cansado. É possível que tudo isto seja de um conservadorismo insuportável, mas também pode não ser.  
 
Há uns tempos, no National Geographic, vi um documentário onde se explicava que o humano gosta tanto de açúcar porque não há nenhum veneno na natureza que seja doce. A indústria moderna pegou neste acidente evolutivo e inundou-nos de possibilidades de nos sentirmos seguros. Paralelamente, fomos perdendo saúde com tanto açúcar. Esta crítica à Indústria é o que permite não me acusar frontalmente de conservadorismo.
 
Ainda em Ronda, a tal capital-ruína de Espanha que sobrou ao romantismo do século XIX para pode vender-se como souvenir aos turistas (e vendeu-se bem a mim, que é bonita até mais não), caminhava uma das tais raparigas na direção da minha esplanada. Estranhei que ela tivesse uma t-shirt, larga, caídas sobre os tais calções, com um enorme bouquet de flores estampado. À medida que se aproximava, pude perceber que tinha umas letras vermelhas no meio do bouquet. Diziam: LOL.

Sunday, 22 September 2013

Do tempo

- Escolhe uma semente, vá; - Esta!; - Mas olha que essa só nasce daqui a um ano, filha; - Um ano?; - Sim; - Um ano é muito, mãe? 

Ouvido, hoje, na secção jardim do AKI. As crianças podem ser impacientes, mas só um adulto pode ter pressa. 

 - Quando ficar sóbrio mato-me. E é por isso que eu não paro de beber. Não tenho coragem de ficar sóbrio. 

Ouvido, ontem, num anexo à sala principal do teatro de Almada, numa peça menos conhecida do Strindberg, o Pelicano. Só um bêbedo pode realmente ter medo da sobriedade, porque é o único que está distanciado o suficiente para a conhecer.

Friday, 13 September 2013

Amor sem esperança

O amor sem esperança não tem um fim, li hoje e quem o escreveu, há oitenta anos, foi Sandor Marai. O amor recém-nascido de Picasso pela Dora Maar, em 36, três anos depois do Marai ter escrito aquilo, agora que penso nisso, estava, pois, e na formulação de Marai, repleto de esperança, a explodir de esperança, conforme pode ser visto na coisinha mais fantástica que pude ver nestas férias, em Málaga - que Picasso deixou aos 19 anos para nunca mais voltar:

Tuesday, 20 August 2013

if she, my liege, can make me know this clearly, I'll love her dearly, ever ever dearly

Era uma vez uma Helena que foi criada por um autor tão grandioso como Homero, mas para figurar numa peça de tão pouca importância que o Harold Bloom, por omissão, considerou-a uma de entre duas ou três que não são obras primas mundiais. Ninguém sabe se a Helena de Shakespeare era bonita como a de Tróia. Sabemos que era médica, e que salvou o poderoso rei de França de uma morte certa. Também sabemos que era casada com um rapaz fogoso e sonhador, e que o casamento tinha praticamente tudo para não dar certo. A certa altura, o rapaz alista-se para combater numa guerra estrangeira, de que desconhecia as causas, só para se ver livre dela. Apaixonada, ela envia-lhe uma carta pedindo que volte, mas Bertrand responde que só será dela se Helena lhe der um filho e se lhe puder exibir um anel de família, que o rapaz guardava consigo. Dado que estava numa guerra, era difícil que a prerrogativa se concretizasse. Helena disfarça-se e entra no cenário de guerra, combina e troca com uma rapariguita por quem Bertrand entretanto se apaixonara e queria desflorar, e acaba por recebê-lo na cama, às escuras, onde o rapaz lhe faz uma jura de amor, selada com o anel, e engravida-a. 

Já estou farto de falar de como, para Chesterton, a verdadeira descoberta é a do explorador inglês que sai de Portsmouth e, apanhado no mau tempo, acha que chegou às Índias mas está apenas de volta a Inglaterra. É cada vez mais preciso fechar os olhos.

Sunday, 18 August 2013

Morte no armário

Violence, when it's in a house, (is) like seeing the clothes in a tree after an explosion. You may be prepared to see death but not the clothes in the tree.

Disse-me hoje o Philip Roth, no the plot against america. A morte que nos inquieta é a morte que se deduz dos vestígios de roupa espalhados desordenadamente nos troncos de árvores sólidas, centenárias, indiferentes. O que nos inquieta no fim de uma relação é a roupa suspensa nos armários, a roupa intacta, inteira, vestível, que não será vestida. O que perturba na morte em Roth é o que será feito do corpo que vestia aquela roupa destruída; o que perturba no fim de uma relação é o que será feito do corpo que vestia aquela roupa intacta. É essa outra forma de ver a contradição insanável de um fim de relação: a roupa foi deixada intacta, mas ninguém a vestirá. 

Tuesday, 16 July 2013

Much ado about very little



Quer-me parecer que, a partir do minuto 14.42, está a chave para perceber os próximos dias - e, ainda mais complicado, o de hoje. Para perceber porque é que o PS vai assinar o acordo. Para perceber que o BE e o PCP parecem estar distraídos quando acusam o PS de incoerência e de desbaratar o que conseguiu obter em dois anos. Para perceber que as eleições antecipadas, para o PS, implicariam ter de falhar com a promessa  do minuto 14.42. E para perceber que o único governo capaz de manter esta promessa até se imolar totalmente é o actual. Não explica nada mais, mas explica isso, e já explica bastante.

Thursday, 11 July 2013

Ilusão

Nos últimos dias tive a sorte de encontrar dois grandes posts no facebook e de ter acabado de ler um livro de Coetzee, todos sobre a ilusão.

Rui Zink escreveu, no seu mural, sobre Lady Macbeth:

Lady Macbeth ... sabia que o cheiro do sangue era mais difícil de lavar das mãos do que o cheiro a merda. Mesmo que este fosse real e o outro (o cheiro do sangue) fosse imaginário. Lady Macbeth era sábia: ela sabia, entre outras coisas, que nada é tão real como aquilo que imaginamos.

Perante um sangue imaginário, que só Lady Macbeth cheira, o mundo, insubstancial na sua mudança permanente, acha que ela está louca. O mundo - quem assiste à peça e além - achará, porventura, que incomodar-se com o cheiro a merda degradável seria mais razoável do que incomodar-se com o cheiro da permanência da culpa e da morte.

Hoje Joaquim Cardoso Dias cita Marguerite Duras numa frase a que estarei condenado a regressar, como o casal Macbeth regressará sempre à imagem de uma adaga suspensa sobre eles: 

Há ilusões que se parecem com a luz do dia;
quando acabam, tudo com elas desapareceu.

Ilusões que dão momentaneamente realidade à realidade que perece, todos os dias, como a merda. Ilusões - o amor, a fé, o poema - que não se tornam reais com a realidade, mas que tornam realidade as coisas que achamos, erradamente (diria, ilusoriamente), reais. Toda a beleza se manifesta como luz, e não como objeto iluminado. Quando a ilusão se vai, tudo o que é real desaparece.

Por fim, Coetzee denuncia, no waiting for the barbarians, a história de um império num tempo indefinido que luta contra inimigos imaginários porque dessa luta - da ilusão que vem de uma crença de ameaça permanente - depende a sua própria sobrevivência. O império acaba derrotado pela sua própria lógica, condenando à morte milhares de soldados em buscas inglórias dos bárbaros, que nunca aparecem. Escreve Coetzee:

Empire has created the time of history. Empire has located its existence not in the smooth recurrent spinning time of the cycle of the seasons but in the jagged time of rise and fall, of beginning and end, of catastrophe. Empire dooms itself to live in history and plot against history

Para o bem e para o mal, a ilusão não é cíclica, tem um começo e tem um fim. Ao contrário de tudo o resto, que ora está sob a luz do dia, ora está à sombra. 

Wednesday, 10 July 2013

2º resgate

A única razão que me parece plausível é que o presidente não quer Portas com tanto poder, e também não quer Seguro com maioria absoluta em 2014. Se for assim, este é o segundo resgate do presidente ao PSD.

Wednesday, 3 July 2013

O que vocês queriam sei eu

Estou o mais longe possível de ter simpatia pelo personagem, mas esta gente toda que anda a chamar irresponsável ao Portas não é a mesma que o chamava cobarde há uns tempos e dizia que ele não clarificava se estava dentro ou fora do governo?

Tuesday, 2 July 2013

Da incerteza

O Einstein dizia que não sabia com que armas seria combatida a 3ª guerra mundial, mas que tinha a certeza que a 4ª seria com pedras e paus. Com a política nacional a coisa é inversa: sabemos quem vai ganhar as eleições legislativas deste ano, não sabemos é quem vai ganhar as do próximo. E é assustador pensar nisso.

Monday, 17 June 2013

Blur

A natureza tem horror ao vazio. E a velhice - enquanto amadurecimento - ocupa um espaço particularmente degenerado na natureza do homem. Se a vida não tem sentido último, o amadurecimento é a forma aperfeiçoada do vazio. Serve para falar deste vídeo absolutamente maravilhoso onde os Blur, reunidos, cantam de modo aperfeiçoado, perfuntório e sublimado, a essência do fim - que é assim uma essência sem substância.

Tuesday, 11 June 2013

Metamorfoses

Apolo, deus do sol, exímio manejador do arco, vai de fazer pouco do cupido, deus na sombra que atira sem ver. Cupido, vingativo, acerta em Apolo com uma flecha das normais, das que apaixonam (de ponta afiada de ouro); a Dafne, ninfa lindíssima, acerta com uma flecha que escorraça, de ponta de chumbo arredondada. Dafne foge aflita pelo mato (a corrida despe-a, o vento sopra os cabelos para trás), e Apolo persegue-a sem resistir: o amor é a razão de te perseguir! Mas, vendo-a correr como se não houvesse amanhã, pelo mato, preocupa-se (Ai de mim! Temo que caias de cara ao chão, que as sebes arranhem as inocentes pernas, te magoes por minha culpa!) e propõe-lhe o seguinte: Corre mais devagar, abranda a tua corrida. Eu seguir-te-ei mais devagar.

É verdade que Apolo alcança Dafne e ela, porque pode, transforma-se em árvore. Mas o ponto fundamental é este: Apolo não consegue evitar perseguir Dafne, mas consegue propor-lhe persegui-la mais devagar. O bem e o amor não são nada a mesma coisa - nem sequer estão no mesmo nível. Mas o amor faz-nos querer fazer pequeno o mal que o amor faz. Persigo-te, e vou-te apanhar porque sou mais rápido que tu, não há nada a fazer quanto a isto!, mas proponho fazê-lo mais devagar para que não te magoes. A bondade, se quisermos, é o que falta ao amor para ser amor e não ser maldade. 


John William Waterhouse, 1908

Estou a adorar ler as metamorfoses.

Friday, 7 June 2013

Chuva branca

Se tradicionalmente os modelos econométricos (aquela coisa do excel mas com nome de boneco sexual para nerds kinkies) se socorriam do ruído branco, agora chegou a vez da chuvinha.

Para quem lê este blog e tem saúde mental, o bottom line do que quero dizer é: esgotaram-se as desculpas e o desconhecido tornou-se tão desconhecido para os curandeiros modernos para era para os antigos, aqueles que faziam danças da chuva.

PS: He who makes a beast of himself gets rid of the pain of being a man.

Wednesday, 22 May 2013

Bocas

Substituir, aqui, governo por big brother e pedro passos coelho pelo nome de qualquer concorrente da novela da vida real. Ou: o país que tem a gravitas de um reality show.

Monday, 13 May 2013

Soluções sérias para Portugal

Tuesday, 23 April 2013

Sobre as recentes nomeações para o governo...

...tenho uma questão e uma citação:

Para a semana tenho de ir a Bruxelas, e gostaria de poder orientar a minha vida. Se continuar a apoucar o governo de forma particularmente rude, poderei vir a ser convidado a integrá-lo?

E a citação é do Garrett: "Foge, cão, que te fazem barão. Para onde? Se me fazem visconde…."

Saturday, 20 April 2013

Tirania


"Sim, é verdade que o meu governo é criticável, mas, ainda assim, há pelo norte do país uns estrangeiros latifundiários que"..., explicou-me um húngaro razoável em Bucareste quando lhe perguntei pela situação do país. Toda a tirania tem cabido em homens razoáveis que começam a falar em latifundiários estrangeiros. Acho eu.

Fui em trabalho a Bucareste. O palácio que Caucesco mandou construir, o segundo maior edifício do mundo, é um enxerto muralhado no coração de uma cidade que rasgou, a prédios de betão, longas e largas avenidas que escondem o bairro histórico, religioso, burguês e popular. Logo que entrei no táxi perguntei pelo palácio. Sempre que via um edifício alto, perguntava ao taxista se era aquele, e ele pedia-me pacientemente para esperar. A certa altura apontou entusiasmado para o sítio onde Caucesco teria sido morto - afinal, era apenas uma lenda, ele foi morto numa base militar, mas não deixa de ser sintomático que o taxista tivesse mais vontade de me mostrar onde Caucesco tinha sido morto, e falar-me de como o Mourinho era um tipo arrogante ou rir-se de mim quando perguntei pelo cinto de segurança, do que mostrar-me o palácio que o tirano construiu no coração da cidade dele. 

Nos Irmãos Karamazov, que calha andar a ler, o estróina Piotr Aleksandrovitch admite, a certa altura, que, se calhar, também tem alojado dentro de si um espírito mau, de pequeno calibre; aliás, porque se fosse maior, escolheria outra casa. E dá que pensar que a tirania é um reduto grandioso. É a casa onde cabe o espírito mau de grande calibre. O esconderijo, sumptuoso e vulnerável, grandioso e enclausurado, onde habitava um homem que, percebi jantando com um colega romeno, tinha a formação de um Relvas e a ambição de um Barroso. Como é que homens destes chegam ao poder e como é que deixam que construam casas como esta? A questão talvez esteja mais naquilo que existe que distrai de olhar para a casa enquanto ela é construída. Há para aí uns estrangeiros...

(E, por falar em estrangeiros, liguei a TVe vi que os romenos também têm um "Romania's got talent": Não é surpreendente que um "conceito", um produto televisivo, baseado na ideia que um certo país em específico tem talento, possa ser vendido e replicado para todos os países? O capitalismo flirta  com o patriotismo como uma vaca de peluche com dinheiro dentro. E assim um dia aparecem os latifundiários estrangeiros no norte do país...)

Friday, 29 March 2013

Luz

A entrevista a Sócrates tem o condão de encerrar em si mesma todas as contradições da esquerda liberal. A genialidade - se posso dizer assim - de Sócrates não está em resolver essas contradições, mas em expô-las com clarividência num panorama político onde, de outra forma, só restam sombras. Sombras muito ténues que sobrevivem inesperadamente às luzes do mundo, que se voltaram há imenso tempo para outro lado qualquer. De Cavacos, Seguros, Relvas, Portas, gente que vagueia numa História que os derrotou mas que que continuam inexplicavelmente a fazer. 

O problema da esquerda liberal - a esquerda onde votei, sem equívocos e arrependimentos, no tempo de Sócrates - é ter o diagnóstico inteiramente certo e, ainda assim, conseguir falhar nas receitas. A esquerda liberal está inteiramente convencida que a explicação da crise é europeia e sistemética. A esquerda liberal denuncia acertadamente a arquitetura da zona euro, que retirou os poderes de política económica aos governos nacionais, democraticamente eleitos, impedindo-os de intervir face a um processo de acumulação de excedentes comerciais insustentáveis no centro, e défices da periferia, sem que oferecesse uma alternativa de política económica centralizada e responsabilizável democraticamente. Ao mesmo tempo, a mesma esquerda defende que é possível continuar a sujeitar a periferia à lógica dos memorandos, ainda que renegociados. Uma espécie de castigo mais ligeiro para crimes que não foram cometidos. 

Esta contradição, em Sócrates, é visível quando aponta tão certeiramente os holofotes ao júbilo que a vinda do FMI causou em tanta gente deste burgo - "quem tem medo do FMI?", perguntava-se, pois que vinham arrumar a casa e fazer o que os de cá não tinham coragem para fazer -, ao mesmo tempo que consegue  defender que o PSD foi além da troika e que o memorando original não previa tirar dois pagamentos aos pensionistas e aos funcionários públicos. O PSD não foi além da troika. A única forma de cumprir as metas nominais para a despesa pública  que lá estavam seria através da redução das prestações sociais e dos salários da função pública. O único resultado credível para o memorando seria o desmantelamento do estado social, o empobrecimento generalizado do país e a transferência de recursos de um classe social para outra. Não há, a meu ver, defesa possível para o memorando original que não implique uma legitimação do memorando atual, e da política do governo. 

Tuesday, 19 March 2013

Caricatura fiel

Que espectro se abateu sobre a Europa nestes dias em que quase foi votado um confisco às contas bancárias dos cipriotas? O confisco é um acto de incompetência e miopia política? Põe em causa a precária torre de euros empilhados onde balança o sistema financeiro? E o que é a austeridade? O que é que se andou a fazer e a defender nos últimos dois anos? Que ideia é esta de que é possível que todos os estados dentro de uma união monetária possam poupar simultaneamente, e que daqui possa resultar uma maior probabilidade de pagarem-se as dívidas de cada um deles? É competência política? É visão longa? Respeita qualquer razoabilidade? Permite cumprir com os objetivos de salvar a Europa? De salvar a Alemanha? De salvar a banca?

Também choca que a medida proposta pelo eurogrupo coloque o peso do ajustamento financeiro sobre um punhado de depositantes que não pode fugir? Mas o que tem feito a austeridade, senão colocar o ajustamento do desequilíbrio comercial e do desarranjo arquitetural do euro sobre a classe dos que não fogem - dos trabalhadores e dos pensionistas? O confisco no Chipre transfere riqueza dos cidadãos para a banca? Mas o que foi o BPN? Bom, o BPN custou cerca de 5 mil milhões de euros ao estado português. Se dividir por 10 milhões de portugueses, dá 500 euros por cada um. A taxa proposta no Chipre era de cerca de 6,5% (estou a falar de cor, não me deu o vagar de ir ver). Para chegar a 500 euros, era preciso que cada cipriota tivesse no banco 7700 euros. Quantos portugueses - e que portugueses - têm hoje em dia, em depósitos, 7700 euros? E o défice na Irlanda, foi o quê? 35% do PIB. Quem é que vai pagar isso? 

Se não é a irrazoabilidade, a estupidez e a insensibilidade social que verdadeiramente choca no caso do Chipre, o que é? É a caricatura? É preciso uma caricatura, um Relvas, um eurogrupo de chanfrados, um governador de banco central chamado Panicos, um macaquinho com óculos a descascar  a banana do capitalismo e a atirá-la para onde as pessoas escorreguem e batam com a tromba no chão?  

Não havia necessidade.

Friday, 1 March 2013

Wednesday, 20 February 2013

Cala a boca, eu sou tão democrata como tu

O melhor título para a História que conte os braços abertos que as nossas "elites" lançaram ao FMI, rejeitando qualquer discussão e análise sistemática das intervenções anteriores do FMI, e qualquer discussão sobre a origem e natureza europeia da crise, terá de ser o paradoxal e medieval "cala a boca, eu sou tão democrata como tu". 

Essa mesma História terá, ainda, de iniciar-se com este discurso de Sócrates de 19 de março de 2011, que desmascara completamente a ideia que para aí anda que este governo surpreendeu toda a gente e está a ir além do que era previsível durante a campanha eleitoral:

"Entre nós e o FMI há dez milhões de portugueses e há um país que pagaria por isso (...) A agenda do FMI e a agenda da ajuda externa levaria o nosso país durante muitos anos a ter de suportar aquilo que são programas ... que põem em causa não apenas o nosso estado social, mas põem em causa também aquilo que é a qualidade de vida de muitos portugueses (...) Esses programas ... exigiram ... que reduzissem o salário mínimo e nós não queremos isso para Portugal. Que terminassem com o 13º mês ou com o 14º mês e nós não queremos isso para Portugal. Que despedissem funcionários públicos e nós não queremos isso para Portugal. Mas verdadeiramente o que está na cabeça de muitos desses dirigentes políticos quando ao longo dos últimos meses sugerem que o pedido de intervenção do FMI era melhor o que está na cabeça deles é verdadeiramente cumprir a sua agenda liberal justificando-a com o FMI. O PSD apresentou um projeto de revisão constitucional ... Está ali todo um programa de governo. E fundamentalmente o que o PSD propõe é que o SNS deixe de ser ... tendencialmente gratuito. Eu sei o que eles querem. O que eles querem é que haja um SNS apenas para os pobres. E depois propõem que o Estado não tenha a obrigação de ter um sistema público de educação... Eles querem educação boa para aqueles que têm rendimento e um sistema publico para aqueles que não têm rendimentos."

Tuesday, 12 February 2013

A carne sub-prime

Esta história dos hamburgueres aldrabados com carne de cavalo pode ser uma imagem para a crise financeira que vivemos. Uma crise que começou com o empacotamento de hipotecas com baixo valor e alto risco, misturadas com hipotecas razoáveis em embalagens com nomes pomposos e um marketing sugestivo e legendas que afirmavam tratar-se de ativos financeiros garantidos por ativos físicos - as casas subjacentes às hipotecas. O problema é que as casas valiam tanto como a carne de cavalo. Este empacotamento era todo feito perante e por causa da incapacidade de ação dos reguladores e dos poderes políticos em geral. Os bancos retalhistas e os supermercados garantiram, por sua vez, que foram surpreendidos e que não sabiam o que é que estava dentro das embalagens que vendiam aos clientes.
 
O discurso marialva contra a ASAE, no passado, tem perfeito eco no discurso que defende o desmantelamento do estado social e que defendeu, em temos de menos pudor e maior verdade, o aligeiramento da regulação financeira. A regulação e a interferência pública é imprescindível para defender o bem-estar dos mais fracos, como se tem visto quer no exemplo da crise financeira, quer no exemplo da crise da carne de cavalo. A ausência de regulação ativa e eficaz, com a ideia de que o mercado tudo auto-regula, tem-se traduzido na multiplicação de espaços de produtos biológicos e controlados para os ricos e nas pressões sobre os preços e sobre a qualidade da produção em massa para os mais pobres - a replicação, aliás, do sistema pré-moderno do provador que garantia a adequabilidade do produto servido à mesa das classes altas.
 
Para os outros, Malthus resolve.

Saturday, 9 February 2013

Glyptotek

Passei o fim de semana passado em Copenhaga, uma cidade que vale a pena revisitar - talvez não no sentido literal, mas de pensar um bocado naquilo. 

O Glyptotek é um museu em Copenhaga que expõe uma soberba coleção de escultura - e é mesmo para ler soberba com os dois significados. Entendo totalmente o fascínio por colecionar escultura. Não acho que seja muito diferente do que levou o Hugh Hefner a montar uma indústria que, sistematicamente, despe mulheres. E não quero mesmo soar mais profundo do que manifestamente não consigo ser, mas a escultura é uma espécie de pornografia das emoções. Tudo é inteiramente simbólico e evidente, ao mesmo tempo. Esconde, mas não controla. É pequeno, mas é maior. 

Existem três esculturas no Glyptotek onde alguém segura um globo pequeno e maior. A primeira é Penelope, a mulher que espera o regresso de Ulisses e, para se manter fiel, adia entregar-se a um dos vários pretendentes dizendo que só o fará quando acabar de tecer um sudário para o sogro. Todas as noites ela desfaz o que tece durante o dia, e, na escultura de J.A. Jerichau, um esculturor dinamarquês do século xix, ela segura numa mão, parecendo quase orgulhosa, o novelo que contém a sua fidelidade e resiliência. Um novelo que é a forma domesticada, humana, de uma infinidade de formas possíveis para aqueles fios todos se enrolarem.  É a coisa pequena mais ameaçadora que ela podia segurar, uma ideia que lhe cabe na mão mas que é capaz de enrolá-la.  

A segunda escultura é a da deusa, julgo que suméria, da fertilidade, que segura uma romã. A romã que tem lá dentro uma imensidão de sementes e um líquido vermelho parecido com sangue. Contém lá dentro a nova vida para os outros, e morte à volta.  

A terceira é a do cupido, do Claudius Marioton, do Salón, e chama-se, na legenda em Inglês, "Eros making the world turn according to his pleasure". A escultura está colocada de modo a que o visitante a vê primeiro de costas. E aí parece uma criança entretida a escarafunchar o brinquedo mundo com uma seta. De frente, um esgar cruel mas compenetrado dá-nos a sensação que ele tem controlo sobre o que faz. Mas não sei se será verdade. Não sei se é verdade que é o amor primário que faz girar o mundo a seu bel prazer, ou se é o mundo que gira tão depressa que essas coisas ficam soterradas, pela simples força da gravidade, no seu núcleo. Incapaz de verdadeiramente sair e fazer girar o mundo, mas simultaneamente nuclear e residual à  rapidez e força com que o mundo gira. Nesse caso, nem o pequeno deus do amor controla aquilo que segura?

Saturday, 19 January 2013

Tuesday, 15 January 2013

Competitividade

A crise faz-me repensar as minhas ideias sobre a Economia. Em particular, isto de andar a defender que a deflação doméstica (reduzir salários e reduzir globalmente a despesa) não pode gerar ganhos de produtividade talvez seja de repensar. Em particular, quer-me parecer que estamos a chegar a um ponto em que a redução sistemática dos salários está a resultar em tornar-nos extraordinariamente competitivos a produzir pobreza.

Friday, 11 January 2013

Timão e os cães

É assim mesmo que se representa Shakespeare. Da forma que vi ontem, em Almada, representarem Timão, o Misantropo. E que bom que Almada se redima da medíocre representação do Mercador de Veneza, que por lá se arrastou há uns meses, oferecendo-nos com este Timão de Atenas o seu exato contraste. E se o Mercador é um dos grandes textos que Shakespeare escreveu, Timão não é - e é tanto maior a ironia e a felicidade que tenham achado necessário inovar sobre o primeiro, mas mantido o segundo intacto, deixando os atores munidos apenas de uma tradução sublime e dos extraordinários poderes de representação de um Luís Vicente e de um Marques d´Arede. Gente que sente tudo de Shakespeare exceto medo.

O Timão, resumidamente, é isto: homem rico dissipa riqueza oferecendo presentes aos amigos; quando precisa destes amigos, eles negam-no três vezes; Timão toma refúgio comendo raízes, a base da terra, numa floresta, mas encontra ouro; com ouro financia um exército para invadir Atenas e prostitutas que a  infestem de doenças. Timão morre, mas o exército vence.

Timão é bom homem? Eu acho que não. Tenho entretido a ideia de que não há bondade que seja dissociada do humano. A bondade que não esteja à altura da complexidade das pessoas não é bondade, é desistência - que bem trouxe Timão ao mundo se dissipou a sua capacidade de agir sobre ele? A bondade tem de ser consequente, e para ser consequente tem de sobreviver, e para sobreviver tem de ser racional. E, para ser racional, tem de ser humana. Aquela discussão que agora surgiu por causa do cão que matou a criança parece-me um ótimo exemplo de como a defesa da bondade sem o primado do humano é inconsequente - é possível e desejável que se pratique o bem para com os cães, mas se pusermos em causa o humano estamos a pôr em causa a própria bondade ao cão: que bondade guarda o mundo animal para com os cães?

E isto lembra-me a minha parte preferida da peça, que, na verdade, são duas. O filósofo cínico Apemantus tenta avisar Timão de que ele está a ser enganado pelos amigos, recorrendo a uma metáfora curiosa. Em Português moderno até faria sentido dizermos que alguém anda a papar outra pessoa, mas em Inglês provavelmente não faz sentido. Diz Apemantus "O you gods, what a number of men eat Timon, and he sees 'em not!". Mais tarde, quando Timão está exilado e fala com dois bandidos, tenta convencê-los que eles têm tudo para sobreviver na floresta. A resposta de um dos bandidos é:

"We cannot live on grass, on berries, water,
 As beasts and birds and fishes."

E Timão responde: "Nor on the beasts themselves, the birds, and fishes; You must eat men".

Acho fabulosa a conceção de que se o mundo não bastar para nos alimentar teremos de começar a comer homens. E acho que isto prende-se intimamente com a parte de a bondade ter de ser humana, ou não ser bondade. 

Tuesday, 8 January 2013

Bieber e a substância ilícita

Esta notícia tem tanta graça. Parece redigida por um Américo Tomás privado do sono por uma noite a assistir a episódios da Heidi - "as imagens publicadas na passada sexta-feira mostram Bieber sentado num sofá a conversar e com um cigarro enrolado, que aparentemente contém substâncias ilícitas"; "nas redes sociais, alguns fãs ficaram chocados: “Bieber o que estás a fazer? Drogas, a sério?”" - , e versa sobre o modo como um artista da pós-pós-modernidade, que não compõe, não canta e não entretém, pode desiludir quem também achava que ele não existia.

Thursday, 3 January 2013

Dickens mas pouco

O poder é baseado na opinião. O poder atual é baseado numa opinião tão insuportável como ele próprio. Levámos no Natal com uma pastilhada ideológica absolutamente indefensável, que teve o seu zénite num anúncio a uma cadeia de supermercados onde um tal personagem com nome Gaspar surge como um chato poupador, contrariado por uma dona de casa moderadamente gira e moderadamente sensata que lhe mostra que é possível gastar pouco e, ainda assim, fazer a festa. A ideia de que o ministro das finanças é um sovina desmancha-prazeres é uma das duas únicas vitórias deste governo - coisa para ser replicada, vezes sem conta, por SMS, mail e conversa de circunstância à mesa da consoada, por quem acha que o está efetivamente a criticar (a outra vitória, aliás da mesma natureza, foi a de conseguir pessoalizar e isolar num único membro do governo o monopólio da bandidagem, como um caixote de lixo hermeticamente fechado para onde se atiraram as compressas com que se cuidou que o resto do governo se manteria perfeitamente assético). Repare-se em toda a iconografia do anúncio: o sr. Gaspar passa o Natal com uma família pequeno-burguesa, com mesa posta em toalha de plástico, que faz os planos de Natal na cozinha e que conta as gotas de espumante. É inexplicável que o sr. Gaspar apareça como o patriarca desta aldeia da roupa branca. É inexplicável que dr. Gaspar não apareça, em vez, de empregado de mesa num Natal de banqueiros, havendo um momento em que, no auge de uma bebedeira ideológica, surpreende os convivas atirando um molho de notas, dizendo, bonacheirão: epá, aqui têm o dinheirinho todo que precisam, e agora gastem-no como bem entenderem, que há mais de onde este veio (parece que os privados, que deterão residualmente o BANIF, onde o estado irá injetar mais de mil milhões de euros, irão manter integralmente o poder de decisão).