Será importante enquadrar a morte de bin Laden, anunciada hoje, no contexto simultaneamente mais e menos abrangente da "guerra ao terror". Esta "guerra" (doravante guerra) começou com um ataque terrorista suicida, organizado por uma célula totalmente autónoma e descentralizada, que vaporizou qualquer vestígio de um inimigo. Havendo necessidade política de retaliação, tornou-se fundamental nomear um. A escolha no entanto não foi óbvia, nem se enquadrou numa lógica suficientemente sólida mesmo para o próprio povo americano: 15 dos 19 terroristas que atacaram as torres gémeas eram originários da Arábia Saudita, um estado forte que formou e forma ideólogos extremistas, mas não foi a Arábia Saudita que foi atacada pelos Estados Unidos, tendo-se optado antes pelo Afeganistão, primeiro, e depois pelo Iraque. Estes países no entanto partilham dois problemas sérios: nenhum deles, e especialmente o segundo, tem uma relação evidente e completa com os homens que atacaram as torres gémeas. Adicionalmente, em nenhum deles sucedeu uma uma vitória militar rápida e inequívoca, que ajudasse a esquecer essa ausência de ligação completa. O símbolo de bin Laden foi assim tornando-se um fetiche com poder agregador e legitimante para a guerra ao terror.
É por isto que penso que a morte de bin Laden é simultaneamente maior e menor que a guerra ao terror, sem nunca se confundir exactamente: é maior porque bin Laden tornou-se um símbolo fundamental, possivelmente o único que sobrou simultaneamente à guerra ao terror e ao ataque terrorista às torres gémeas, e, mais importante, o único que podia efectivamente ser vencido. A definição e sucesso da guerra ao terror tornou-se dependente de bin Laden; mas bin Laden também é menor, muito menor do que a guerra ao terror, que incluiu a invasão de estados soberanos onde morreram milhões de pessoas, produzindo efeitos que são ainda imprevisíveis numa geografia vasta e importante para a segurança do globo, alterando relações e equilíbrios de poder, privilegiando interesses, forçando novas definições étnicas e de inimigos regionais, num contexto onde entretanto a China, a Rússia, o Brasil, emergiram como super-potências.
Mas bin Laden não é exactamente a guerra ao terror, por menos que isso se vá tornar claro nos próximos meses. E não será claro por isto: como alguns vultos pouco recomendáveis da história do século XX professaram, a vitória - qualquer que seja, e sob que pressupostos for - tende a legitimar os vencedores. E a história dos vencedores americanos é simples: um dia nós dissemos que iamos matar bin Laden, e conseguimo-lo. Num mundo minado pela incerteza, alguma dela criada e reforçada com a guerra ao terror, alguém que consegue realizar o que promete potencia uma falsa sensação de segurança que conferirá lógica e um poder quase fetichista a uma boa parte daquilo que os americanos já fizeram e vão fazer a nível de política externa, confundido subitamente bin Laden, e a sua morte, com um momento de uma longa marcha por uma vitória legítima. Sobre o quê? Ainda vamos ver.