No entanto, esses opinadores não podem propriamente defender que a geografia não tem importância para a avaliação moral do problema, simplesmente por estarmos perante uma apropriação indevida de bens privados e/ou de violência "irracional": certamente, levarei esses opinadores a concordar que a avaliação moral da apropriação de bens privados e violência "irracional" deverá ser devidamente contextualizada numa narrativa que se situe numa dada geografia e num dado período histórico. O que dizer, por exemplo, da apropriação e violência do expansionismo ultramarino português no sec. XV, ou da apropriação de terras nas enclosures do sec. XVIII, e subsequente desenraizamento dos camponeses que as trabalhavam e que passaram a engrossar as fileiras de mão-de-obra barata nas fábricas, ou da ocupação particularmente violenta por parte de um povo sem terra – Israel - de uma terra que já tinha já um povo? Certamente, será necessário contextualizar e incluir uma referência específica a um local e a um período. Pois bem. O local são alguns subúrbios londrinos.
Ora eu, que não sei explicar o que está a acontecer, pelo menos sei o que está a acontecer: são fenómenos de violência que acontecem nos subúrbios londrinos (e noutras cidades, mas eu nunca lá vivi, em muitas delas nem sequer estive, e por isso não me apraz falar sobre elas) e que envolvem alguns dos seus habitantes. Não tenho explicação para o que está a acontecer, mas rejeito qualquer explicação que, em alguma parte, não aceite esta realidade e que não permita enquadrar as dinâmicas geográficas e sociais que geraram a população que habita nesses subúrbios londrinos. Nomeadamente, rejeito qualquer teoria que não inclua estes factos:
Nos últimos vinte anos, o Reino Unido tem assistido a uma desindustrialização dramática, conforme pode ser visto no gráfico abaixo, que contrasta a evolução do peso da indústria no PIB britânico e a de outros países comparáveis.
Esta desindustrialização foi acompanhada por um conjunto de políticas que a favoreceram sistematicamente - os serviços não emergiram espontaneamente na economia britânica, como uma vantagem comparativa à Ricardo. Em particular, destacaria dessas políticas a política monetária. O gráfico abaixo mostra a evolução das taxas de juro de refinanciamento do Banco de Inglaterra, comparando com as do Banco Central Europeu, e mostra como sistematicamente se praticavam juros significativamente mais elevados - até à crise financeira.
Em paralelo com juros mais elevados, e tal como seria de esperar, a libra durante os anos prévios à crise esteve significativamente sobre-avaliada. O gráfico abaixo contrasta, para um horizonte temporal mais curto (o google finance não mostra para trás de 2004), o valor da libra nos tais anos de juros elevados com aquilo que a libra vale desde 2008, ano em que se descobriu que afinal o sector financeiro era mais gato que lebre.
A economia, cada vez mais centrada na City (o bairro financeiro de Londres), corria bem até 2007, e os bónus no sector financeiro multiplicavam-se - em 2005, por exemplo, cerca de 3000 bancários da City receberam bónus de pelo menos 1 milhão de libras. Nada disto é errado, dizem, porque, afinal, a economia deve permitir premiar os melhores. E os melhores, que recebiam muito dinheiro, compraram casas - as casas melhores. As casas WC, salvo seja, de Chelsea, Knigthsbridge, Kensington, multiplicaram alguns dígitos em valor em poucos anos. O gráfico abaixo mostra a evolução do preço médio das casas em Londres nos últimos anos. O valor médio passou de cerca de 150 mil libras em 2000 para 300 mil em 2008 - dá para ter uma ideia sobre o que aconteceu às casas dos bairros mais caros. Relembro, entretanto, o gráfico que mostrava a evolução do rendimento por classe: temos portanto uma duplicação no valor das casas, e uma redução em 12% no rendimento dos 10% mais pobres. É fácil perceber para onde foram arrastados estes infelizes que, por não serem suficientemente bons.
Poder-se-ia também falar da política de imigração perseguida pelo governo Labour e, agora, continuada pelo governo conservador, e o modo como esta política condiciona os ordenados mais baixos. Também se podia falar da desregulação que permitiu que o sector financeiro crescesse deste modo e pagasse os bónus que pagava - mas já se falou o suficiente disso.
E repito, finalmente, mas apenas para que surja neste post uma referência específica a um subúrbio londrino: a geografia importa, e um roubo na City faz muito menos barulho do que um roubo no Morissons de Peckham.