Fui a Almada ver uma representação do Mercador de Veneza, a peça de um grande génio chamado Shakespeare mas também a de um pequeno mau génio chamado tempo. Os quatro séculos onde a peça foi comentada por gente como Goethe, Pope, Marx, Freud, representada no novo mundo, no velho e na barbárie do iii reich, dão a cada palavra pouca liberdade e muito peso. Percebe-se a vontade de inovar, e nós portugueses nunca nos fizemos rogados.
Infelizmente, nem sempre é boa ideia. Para iniciar, a peça vive da polarização entre conceitos aparentemente contraditórios: entre a Veneza capitalista, formal, masculina, onde até para fugir é preciso vestir-se de homem, e uma Belmont intuitiva, feminina, idílica; entre um Shylock calculista, vingativo e rico e um Antonio sensível, generoso e empobrecido. Estes contrários são apresentados de modo extremamente elegante por Shakespeare, como um paralelismo permanente entre os dois locais, que se fecham numa síntese onde os homens intermediários - Antonio e Shylock - terminam igualmente sós e os que meteram os recursos a funcionar e aceitaram o risco herdam o paraíso. Mas o arranjo de hoje, inovador, resolve partir a peça em duas partes, a primeira das quais mostra de seguida tudo o que acontece em Veneza e a segunda tudo o que acontece em Belmont. A ideia talvez tenha sido a de a primeira parte focar-se no ponto de vista de Shylock, que não conhece o que se passa em Belmont e se limita a ser rapidamente engolido numa série de eventos que não só não lhe permitem vingar-se, como o levam a perder tudo o que tem (filha, dinheiro, religião, por esta ordem). Mas não funciona. Sem o paralelismo, não há necessidade de uma síntese, mas apenas da resolução de dois problemas distintos: o de Shylock, que fica sozinho, e o de Antonio, que fica sozinho, mas o ponto é que ficam ambos sozinhos em simultâneo e como resolução de um problema comum. Tal como os dois homens opostos são semelhantes, Belmont precisa da existência paralela de Veneza, da qual é impossível de se distinguir: o paralelismo entre a melancolia de Antonio e Portia, a dependência de Belmont da riqueza (herdada) de Veneza (que a gere), e de Veneza da redenção de Belmont, tornam as cidades como os dois lados do mesmo local. Este problema com a peça é ainda mais óbvio quando a frase mais importante, da Portia no tribunal - "which is the merchant here and which the Jew?", em vez de ser dita inteira, como um todo, é dita em duas partes: primeiro pergunta quem é o mercador, e apresenta-se Antonio, e depois quem é o judeu, e apresenta-se Shylock. Uma das frases mais importantes da peça, que pretende introduzir a incapacidade de distinguir os dois homens e que tem inerente uma enorme ironia (dado que é impossível não reparar que o Judeu tem a capa e o chapéu), passou a ser dita como se o fosse por uma professora primária a fazer a chamada.
Para piorar, a representação é medíocre. O momento que mais gosto da peça é quando Lorenzo e Jessica procuram elevar o seu amor à eternidade, comparando-o, à vez, com os exemplos mais românticos da antiguidade clássica (Troilus e Cressida, Thisbe e Pyramus, etc) sem nunca referirem os fins trágicos que estes pares tiveram. Eu gosto de pensar que não o referem por terem tido uma educação incompleta, que só lhes permitiu reter nomes e não as histórias em si. Não é por acaso que Ben Jonson acusou Shakespeare, depois da morta deste, de ter pouco latim e ainda menos grego. A educação formal incluía o grego e o latim suficientes, tal como hoje se ensina muita álgebra mas pouco cálculo nas escolas secundárias, pelo menos em Portugal. Não tendo tido educação suficiente para conhecer o lado trágico dos exemplos que citam para engrandecer o amor que sentem, o elemento trágico de um amor apaixonado - algo que não parece ter um fim apesar de ele estar sempre presente - está ali visível (para a assistência) na força toda. Eu só consigo imaginar os dois deitados na relva, só com a luz das estrelas, interrompendo-se mutuamente para citarem novos exemplos de amores insuperáveis. Nesta peça, os dois estão em pé (em pé!), e não só não se interrompem, como declamam as suas frases pausadamente. Como se soubessem o que estão a dizer...
Esta é, aliás, em toda a linha, uma peça onde não há sentimento: no tribunal, que representa a confluência de séculos de opressão dos judeus na Europa, que finalmente podem ser vingados, com o terror de um homem que acha que lhe vão arrancar literalmente o coração (por causa de uma dívida que serviu para que o amor da sua vida pudesse seduzir a mulher que o levou), e não há um ui, um ai, tudo é declamado, tudo é medo de Shakespeare.
E acabei por falar de tanto e não falei do mais importante, que é o enorme paralelismo da peça (original) com o troikismo deste país. Ficam só dois detalhes: o modo como Bassanio explica que é preciso dinheiro para conseguir salvar o dinheiro que perdeu e que agora deve (dando o brilhante exemplo de que quando perde uma seta, precisa de lançar outra seta para saber onde aterrou a primeira), e o modo como Antonio se expressa no tribunal, referindo que o seu pathos, a sua crise, o destruira de tal forma que não sobraria o pedaço de carne necessário para pagar aos seus credores.
These griefs and losses have so bated me,
That I shall hardly spare a pound of flesh
Tomorrow to my bloody creditor.
These griefs and losses have so bated me,
That I shall hardly spare a pound of flesh
Tomorrow to my bloody creditor.