Na maravilhosa exposição da arte déco em Portugal, no mnac, encontrei esta bonita escultura de tamanho real em terracota, de Canto da Maia, que representa Adão e Eva (tendo como nomes alternativos "Êxtase", "Canto de amor" e "Juventude"). O par primitivo de apaixonados (sem histórias de amor trágico para lembrar), Adão e Eva, simultaneamente íntimos e excluídos um do outro, mestres e servos da harmonia selvagem da paixão, só com uma maçã na mão de Eva a lembrar o espectador da sua impotência perante a tragédia que se segue.
Sunday, 28 October 2012
Thursday, 25 October 2012
A tragédia
A forma mais sublime da tragédia é aquela onde o espectador tem todo o conhecimento e nenhum poder, e regressa assim a uma espécie de infância onde a sua condição não tem linguagem que lhe permita dizer de onde vem a dor nem capacidade de sozinho se desembaraçar dela. As personagens, pelo contrário, têm muito poder mas sabem muito pouco. A imagem acima é do filme "Insustentável Leveza do Ser" - depois de todas as antíteses se terem resolvido (ou seja, quando já não há mais forças dolorosas que façam acontecer coisas na vida dele), Tomas sente-se feliz, segundos antes de morrer num acidente no carro que é ele próprio, finalmente, que conduz.
Shakespeare é o mestre deste tipo de tragédia. Aquele momento, por exemplo, do "Mercador de Veneza" onde o público ouve impotente Jessica e Lorenzo expressarem a sua paixão citando nomes de personagens de histórias de amor das quais desconhecem os fins trágicos, apesar de serem clássicos que toda a gente conhecia. O público sabe assim que são trágicas e sabe, se tiver idade suficiente, que a paixão tem tudo para ser eterna excepto tempo. Mas não se pode fazer nada, não é possível dizer-lhes. Há uma outra peça onde Shakespeare ainda ilustra melhor esta ideia de tragédia, lembrando-nos que nós também fazemos parte dela. No "Sonho de uma Noite de Verão", dois casais de noivos assistem à gargalhada a uma péssima representação do enorme drama de Thisbe e Pyramus, ignorando que, horas antes, estavam numa floresta onde os deuses, chateados com outras coisas, tinham trocado as suas paixões só para as trocarem logo a seguir e outra vez. Os casais que só por um mero acaso se amam riem confiantes de uma tragédia mal representada, fortalecidos numa certeza indestrutível e acidental - e é assim que vejo a tragédia, como algo que, tanto pela ignorância de quem a vive como pela impotência de quem a vê, é indestrutível. É por isso que fazemos parte integrante da tragédia. Nesta peça, claro, o público vê-se a si mesmo no riso daquela gente ignorante e apaixonada, e dificilmente ri - de uma comédia que é realmente trágica.
Sunday, 21 October 2012
The world is still deceived with ornament
Fui a Almada ver uma representação do Mercador de Veneza, a peça de um grande génio chamado Shakespeare mas também a de um pequeno mau génio chamado tempo. Os quatro séculos onde a peça foi comentada por gente como Goethe, Pope, Marx, Freud, representada no novo mundo, no velho e na barbárie do iii reich, dão a cada palavra pouca liberdade e muito peso. Percebe-se a vontade de inovar, e nós portugueses nunca nos fizemos rogados.
Infelizmente, nem sempre é boa ideia. Para iniciar, a peça vive da polarização entre conceitos aparentemente contraditórios: entre a Veneza capitalista, formal, masculina, onde até para fugir é preciso vestir-se de homem, e uma Belmont intuitiva, feminina, idílica; entre um Shylock calculista, vingativo e rico e um Antonio sensível, generoso e empobrecido. Estes contrários são apresentados de modo extremamente elegante por Shakespeare, como um paralelismo permanente entre os dois locais, que se fecham numa síntese onde os homens intermediários - Antonio e Shylock - terminam igualmente sós e os que meteram os recursos a funcionar e aceitaram o risco herdam o paraíso. Mas o arranjo de hoje, inovador, resolve partir a peça em duas partes, a primeira das quais mostra de seguida tudo o que acontece em Veneza e a segunda tudo o que acontece em Belmont. A ideia talvez tenha sido a de a primeira parte focar-se no ponto de vista de Shylock, que não conhece o que se passa em Belmont e se limita a ser rapidamente engolido numa série de eventos que não só não lhe permitem vingar-se, como o levam a perder tudo o que tem (filha, dinheiro, religião, por esta ordem). Mas não funciona. Sem o paralelismo, não há necessidade de uma síntese, mas apenas da resolução de dois problemas distintos: o de Shylock, que fica sozinho, e o de Antonio, que fica sozinho, mas o ponto é que ficam ambos sozinhos em simultâneo e como resolução de um problema comum. Tal como os dois homens opostos são semelhantes, Belmont precisa da existência paralela de Veneza, da qual é impossível de se distinguir: o paralelismo entre a melancolia de Antonio e Portia, a dependência de Belmont da riqueza (herdada) de Veneza (que a gere), e de Veneza da redenção de Belmont, tornam as cidades como os dois lados do mesmo local. Este problema com a peça é ainda mais óbvio quando a frase mais importante, da Portia no tribunal - "which is the merchant here and which the Jew?", em vez de ser dita inteira, como um todo, é dita em duas partes: primeiro pergunta quem é o mercador, e apresenta-se Antonio, e depois quem é o judeu, e apresenta-se Shylock. Uma das frases mais importantes da peça, que pretende introduzir a incapacidade de distinguir os dois homens e que tem inerente uma enorme ironia (dado que é impossível não reparar que o Judeu tem a capa e o chapéu), passou a ser dita como se o fosse por uma professora primária a fazer a chamada.
Para piorar, a representação é medíocre. O momento que mais gosto da peça é quando Lorenzo e Jessica procuram elevar o seu amor à eternidade, comparando-o, à vez, com os exemplos mais românticos da antiguidade clássica (Troilus e Cressida, Thisbe e Pyramus, etc) sem nunca referirem os fins trágicos que estes pares tiveram. Eu gosto de pensar que não o referem por terem tido uma educação incompleta, que só lhes permitiu reter nomes e não as histórias em si. Não é por acaso que Ben Jonson acusou Shakespeare, depois da morta deste, de ter pouco latim e ainda menos grego. A educação formal incluía o grego e o latim suficientes, tal como hoje se ensina muita álgebra mas pouco cálculo nas escolas secundárias, pelo menos em Portugal. Não tendo tido educação suficiente para conhecer o lado trágico dos exemplos que citam para engrandecer o amor que sentem, o elemento trágico de um amor apaixonado - algo que não parece ter um fim apesar de ele estar sempre presente - está ali visível (para a assistência) na força toda. Eu só consigo imaginar os dois deitados na relva, só com a luz das estrelas, interrompendo-se mutuamente para citarem novos exemplos de amores insuperáveis. Nesta peça, os dois estão em pé (em pé!), e não só não se interrompem, como declamam as suas frases pausadamente. Como se soubessem o que estão a dizer...
Esta é, aliás, em toda a linha, uma peça onde não há sentimento: no tribunal, que representa a confluência de séculos de opressão dos judeus na Europa, que finalmente podem ser vingados, com o terror de um homem que acha que lhe vão arrancar literalmente o coração (por causa de uma dívida que serviu para que o amor da sua vida pudesse seduzir a mulher que o levou), e não há um ui, um ai, tudo é declamado, tudo é medo de Shakespeare.
E acabei por falar de tanto e não falei do mais importante, que é o enorme paralelismo da peça (original) com o troikismo deste país. Ficam só dois detalhes: o modo como Bassanio explica que é preciso dinheiro para conseguir salvar o dinheiro que perdeu e que agora deve (dando o brilhante exemplo de que quando perde uma seta, precisa de lançar outra seta para saber onde aterrou a primeira), e o modo como Antonio se expressa no tribunal, referindo que o seu pathos, a sua crise, o destruira de tal forma que não sobraria o pedaço de carne necessário para pagar aos seus credores.
These griefs and losses have so bated me,
That I shall hardly spare a pound of flesh
Tomorrow to my bloody creditor.
These griefs and losses have so bated me,
That I shall hardly spare a pound of flesh
Tomorrow to my bloody creditor.
Tuesday, 16 October 2012
Os conservadores não gostam muito de História
Há um ano eu chamei ao memorando de entendimento da troika o novo tratado de Versalhes. Um tratado com medidas de austeridade extrema que tinham como objetivo garantir que a Alemanha não voltava ao seu estado bélico. As medidas do tratado enfraqueceram-nos tanto, que praticamente se tornou inevitável que a Alemanha se tornasse um estado bélico. O memorando quer garantir que Portugal paga a dívida, destruindo a economia de tal modo que se torna impossível pagar a dívida. Etc etc.
É curioso que alguém tente defender que o problema da Alemanha nos anos 30 tenha sido a deflação. Não, é mesmo só parvo.
Monday, 8 October 2012
Um governo preso no liberalismo
Tal como há um ano eu estava convencido que o mais importante era demonstrar que o memorando era uma contradição nos seus termos e reduzia objetivamente a probabilidade de Portugal vir a pagar a sua dívida, resultando assim que o único objetivo era o de punir o país e servir de exemplo para que outros países da periferia europeia não ponderassem usar políticas pró-ativas e contra-cíclicas parar responder ao avolumar da crise económica - enquanto caiam de maduros os ativos nacionais vendidos a preço de saldo -, hoje acho que a grande batalha para a esquerda passa por não deixar que nos digam que este governo não é um governo liberal. Isto é tão mais importante quando já se percebem as tentativas de substituir este governo por um outro - que tente novamente o liberalismo, que falhe novamente, mas que falhe melhor. Se não formos capazes de demonstrar que a natureza da acção deste governo, e que a natureza da catástrofe económica que dela resulta, é totalmente liberal, a falsificabilidade que o liberal Popper nos ensinou, e que é supostamente fundamental para a eficácia e sobrevivência da democracia, é só uma palavra que tive bastante dificuldade de encontrar no dicionário.
A lógica dos argumentos da direita é, curiosamente, muito próxima daquela que os marxistas-leninistas usam para defender que o socialismo científico nunca foi testado na prática - pelo que não se pode rejeitá-lo. A lógica é sempre a de que as ideias que defendem são tão boas que toda a gente - incluindo os derrotados - correm para abraçá-las. O terror de uma violência sem critério aparente e a acumulação de capital forçada pelo estado sobre o campesinato e sobre o próprio proletariado era uma condição fundamental para poder derrotar o feudalismo russo, a burguesia embrionária - e a horda de gente com dúvidas que, estranhamente, subsiste sempre em todo o lado, só para chatear.
O argumento da direita é o de que um governo realmente liberal não sobe impostos, por um lado, e faz um esforço de redução da despesa e das "gordurinhas" do estado, por outro. O que não podia ser mais falso. O liberalismo exige um estado disciplinador, burocrático e de longo alcance, que financie e suporte uma máquina repressiva sobre todos aqueles que atentem sobre o direito à propriedade privada entretanto acumulada. Sem tribunais preparados e eficientes, sem polícias numerosas e capacitadas, sem cadeias, sem fiscalização forte das fronteiras, sem um exército e uma diplomacia bem financiados que possam defender minimamente os interesses externos do país, sem recursos que permitam injetar desesperadamente liquidez na banca durante os períodos cíclicos de falta de liquidez - não há liberalismo. Os défices de Reagen, Thatcher e Bush são sintomáticos da natureza de estado gordo que está subjacente ao liberalismo. Um estado gordo exige impostos, e não se podendo financiar o estado apenas com impostos sobre os pobres, nem sobre os ricos - em cuja acumulação de capital depende o liberalismo -, taxa-se a classe média - que é o verdadeiro elemento de suporte do liberalismo e que invariavelmente se vira contra o mesmo, provando a sua impossibilidade prática de implementação. O liberalismo não se desenvolve em abstrato - não se convence uma multidão de pessoas da bondade e naturalidade de uns poucos levarem quase tudo e a maioria ficar com pouco. O liberalismo. tal como o comunismo, desenvolve-se necessariamente com um elemento repressivo e que procure sempre o equilíbrio de algo que é cronicamente desequilibrado. Tudo isto custa dinheiro.
Não há nenhum elemento de novidade em um governo liberal aumentar impostos e não reduzir a despesa - o que haveria de novo seria um governo liberal que não alterasse a composição da despesa, e isso, como se sabe pelos cortes na saúde e na educação, e no aumento da despesa para salvar a banca, está a ser feito.
Vale a pena voltar a este tema repetidamente nos próximos tempos. Até para ajudar a rejeitar anedotas geniais como a do Ricardo de Araújo Pereira no Governo Sombra, que tenta demonstrar a pior natureza não só liberal, mas também socialista, de Vítor Gaspar, e que deixo abaixo:
"Havia uma anedota muito engraçada nos países socialistas que era: quais são as três vitórias dos países socialistas? A educação, a saúde e o desporto. E quais as três derrotas? O pequeno almoço, o almoço e o jantar. Ora vítor gaspar tem seis derrotas, que são a educação, a saúde, o desporto, o pequeno almoço, o almoço e o jantar"
Wednesday, 3 October 2012
Roma e o amor
Tenho uma relação própria com o woody allen, que consiste em consumi-lo compulsivamente sem precisar de parar para coisas menores como o enredo. Os filmes são maratonas de metáforas a correr atrás dos corpos dos atores. Neste filme em particular adorei o modo como aquele ator famoso italiano representa (se faz passar por) um mero mortal que, sem motivos aparentes, se torna famoso de um dia para o outro - o ator que é famoso por representar (por se fazer passar por alguém) representa alguém que se torna famoso por ser ele próprio, na sua imensa banalidade. É a delícia que Shakespeare devia sentir quando metia um homem a representar uma mulher que se fazia passar por um homem, ou a delícia de uma cidade onde hoje as ruínas são mais populares do que eram os edifícios imperiais e eficientes de uma cidade que era e é eterna - e cíclica. A fama, e o amor, acontecem ambos nas suas próprias ruínas - na visibilidade aparente das estruturas que ficam depois de não terem aguentado o peso de tudo o resto (que desaparece para sempre do tempo). É preciso recordar que a única miúda gira no filme é a prostituta, a mulher que representa quem quer que seja e que dá amor às famílias ricas. A mulher que não aparecerá nas fotografias dos casais que se aguentaram porque ela lá esteve, incógnita, no meio, a satisfazer o patriarca. Tudo o resto é Roma e os seus turistas, ou woody allen e a sua audiência, em busca de um sentido para as suas ruínas.
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