Wednesday, 20 February 2013

Cala a boca, eu sou tão democrata como tu

O melhor título para a História que conte os braços abertos que as nossas "elites" lançaram ao FMI, rejeitando qualquer discussão e análise sistemática das intervenções anteriores do FMI, e qualquer discussão sobre a origem e natureza europeia da crise, terá de ser o paradoxal e medieval "cala a boca, eu sou tão democrata como tu". 

Essa mesma História terá, ainda, de iniciar-se com este discurso de Sócrates de 19 de março de 2011, que desmascara completamente a ideia que para aí anda que este governo surpreendeu toda a gente e está a ir além do que era previsível durante a campanha eleitoral:

"Entre nós e o FMI há dez milhões de portugueses e há um país que pagaria por isso (...) A agenda do FMI e a agenda da ajuda externa levaria o nosso país durante muitos anos a ter de suportar aquilo que são programas ... que põem em causa não apenas o nosso estado social, mas põem em causa também aquilo que é a qualidade de vida de muitos portugueses (...) Esses programas ... exigiram ... que reduzissem o salário mínimo e nós não queremos isso para Portugal. Que terminassem com o 13º mês ou com o 14º mês e nós não queremos isso para Portugal. Que despedissem funcionários públicos e nós não queremos isso para Portugal. Mas verdadeiramente o que está na cabeça de muitos desses dirigentes políticos quando ao longo dos últimos meses sugerem que o pedido de intervenção do FMI era melhor o que está na cabeça deles é verdadeiramente cumprir a sua agenda liberal justificando-a com o FMI. O PSD apresentou um projeto de revisão constitucional ... Está ali todo um programa de governo. E fundamentalmente o que o PSD propõe é que o SNS deixe de ser ... tendencialmente gratuito. Eu sei o que eles querem. O que eles querem é que haja um SNS apenas para os pobres. E depois propõem que o Estado não tenha a obrigação de ter um sistema público de educação... Eles querem educação boa para aqueles que têm rendimento e um sistema publico para aqueles que não têm rendimentos."

Tuesday, 12 February 2013

A carne sub-prime

Esta história dos hamburgueres aldrabados com carne de cavalo pode ser uma imagem para a crise financeira que vivemos. Uma crise que começou com o empacotamento de hipotecas com baixo valor e alto risco, misturadas com hipotecas razoáveis em embalagens com nomes pomposos e um marketing sugestivo e legendas que afirmavam tratar-se de ativos financeiros garantidos por ativos físicos - as casas subjacentes às hipotecas. O problema é que as casas valiam tanto como a carne de cavalo. Este empacotamento era todo feito perante e por causa da incapacidade de ação dos reguladores e dos poderes políticos em geral. Os bancos retalhistas e os supermercados garantiram, por sua vez, que foram surpreendidos e que não sabiam o que é que estava dentro das embalagens que vendiam aos clientes.
 
O discurso marialva contra a ASAE, no passado, tem perfeito eco no discurso que defende o desmantelamento do estado social e que defendeu, em temos de menos pudor e maior verdade, o aligeiramento da regulação financeira. A regulação e a interferência pública é imprescindível para defender o bem-estar dos mais fracos, como se tem visto quer no exemplo da crise financeira, quer no exemplo da crise da carne de cavalo. A ausência de regulação ativa e eficaz, com a ideia de que o mercado tudo auto-regula, tem-se traduzido na multiplicação de espaços de produtos biológicos e controlados para os ricos e nas pressões sobre os preços e sobre a qualidade da produção em massa para os mais pobres - a replicação, aliás, do sistema pré-moderno do provador que garantia a adequabilidade do produto servido à mesa das classes altas.
 
Para os outros, Malthus resolve.

Saturday, 9 February 2013

Glyptotek

Passei o fim de semana passado em Copenhaga, uma cidade que vale a pena revisitar - talvez não no sentido literal, mas de pensar um bocado naquilo. 

O Glyptotek é um museu em Copenhaga que expõe uma soberba coleção de escultura - e é mesmo para ler soberba com os dois significados. Entendo totalmente o fascínio por colecionar escultura. Não acho que seja muito diferente do que levou o Hugh Hefner a montar uma indústria que, sistematicamente, despe mulheres. E não quero mesmo soar mais profundo do que manifestamente não consigo ser, mas a escultura é uma espécie de pornografia das emoções. Tudo é inteiramente simbólico e evidente, ao mesmo tempo. Esconde, mas não controla. É pequeno, mas é maior. 

Existem três esculturas no Glyptotek onde alguém segura um globo pequeno e maior. A primeira é Penelope, a mulher que espera o regresso de Ulisses e, para se manter fiel, adia entregar-se a um dos vários pretendentes dizendo que só o fará quando acabar de tecer um sudário para o sogro. Todas as noites ela desfaz o que tece durante o dia, e, na escultura de J.A. Jerichau, um esculturor dinamarquês do século xix, ela segura numa mão, parecendo quase orgulhosa, o novelo que contém a sua fidelidade e resiliência. Um novelo que é a forma domesticada, humana, de uma infinidade de formas possíveis para aqueles fios todos se enrolarem.  É a coisa pequena mais ameaçadora que ela podia segurar, uma ideia que lhe cabe na mão mas que é capaz de enrolá-la.  

A segunda escultura é a da deusa, julgo que suméria, da fertilidade, que segura uma romã. A romã que tem lá dentro uma imensidão de sementes e um líquido vermelho parecido com sangue. Contém lá dentro a nova vida para os outros, e morte à volta.  

A terceira é a do cupido, do Claudius Marioton, do Salón, e chama-se, na legenda em Inglês, "Eros making the world turn according to his pleasure". A escultura está colocada de modo a que o visitante a vê primeiro de costas. E aí parece uma criança entretida a escarafunchar o brinquedo mundo com uma seta. De frente, um esgar cruel mas compenetrado dá-nos a sensação que ele tem controlo sobre o que faz. Mas não sei se será verdade. Não sei se é verdade que é o amor primário que faz girar o mundo a seu bel prazer, ou se é o mundo que gira tão depressa que essas coisas ficam soterradas, pela simples força da gravidade, no seu núcleo. Incapaz de verdadeiramente sair e fazer girar o mundo, mas simultaneamente nuclear e residual à  rapidez e força com que o mundo gira. Nesse caso, nem o pequeno deus do amor controla aquilo que segura?