Um documento que circulou internamente no Governo demonstra, elegantemente, a natureza das medidas de austeridade anunciadas. Diz-se, a determinada altura, que "(a)s contribuições dos trabalhadores sobem, mas as contribuições das empresas descem. Como um todo, a economia não fica mais sobrecarregada com impostos/contribuições. Isso é que é importante salvaguardar. O impacto na actividade económica será positivo".
Esta afirmação tem subjacente uma crença fundamental sobre o funcionamento dos mercados: as transferências de rendimento entre o trabalho e o capital são boas para a economia. É exatamente isso que é dito: as medidas são neutras do ponto de vista da receita fiscal como um todo. No entanto, as medidas terão um impacte positivo na economia, porque, precisamente, o dinheiro nas mãos dos empresários é mais útil do que nas mãos dos trabalhadores.
Com dinheiro nas mãos, os empresários investem e a economia progride. É este o pecado original dos liberais, e que revela o modo como entendem a origem da economia capitalista. Esta leitura da história ignora por completo considerações sobre o papel das instituições, do estado, da violência e do poder. Neste mundo idílico, a economia é geração espontânea dos
empresários, e os trabalhadores têm a sorte de beneficiar dela. Reconhecer o papel do consumo privado na economia é contrário a esta ideia, precisamente porque inverte a lógica liberal, que coloca o primado no investimento, do qual o consumo é apenas um by-product.
A transferência entre o capital e o trabalho, proposta pelo Governo Português, não é neutra nem tem um impacte positivo. O problema económico do país não é, intriscamente, o de uma insuficiente poupança. Existem recursos disponíveis, como se tem sabido. Os bancos têm financiamento barato e o consumo de carros de luxo não tem diminuído, o que indicia que existem rendimento na classe mais alta. O problema, como dizia, não é o de falta de poupança, mas falta de investimento. Esta diferença entre a poupança e o investimento é que determina que o produto continue a cair, até que as duas variáveis se igualem. A questão central, portanto, é a da falta de vontade de investir e assumir riscos, e a falta de vontade dos bancos emprestarem dinheiro. E esta falta de vontade prende-se, essencialmente, com a expectável contração do consumo que sucederá, essencialmente também, por causa das medidas do Governo.
Como M. Kalecki demonstrou, retirar rendimento da classe mais baixa (que consome mais) e entregá-la à classe mais alta (que poupa mais) tem efeitos negativos em momentos de recessão (ou seja, em momentos onde não se quer investir).
Ideologicamente, no entanto, é essencial manter a fábula de que o dinheiro nas mãos dos ricos multiplica-se generosamente e transborda para as mãos saciosas dos pobres.