Monday, 26 November 2012

Ortodoxia

Para Chesterton, o descobridor não sai de Inglaterra e chega ao Polo Sul, mas sai sim de Inglaterra e, por acidente, volta ao seu país convencido que acabou de descobrir uma nova ilha nos mares do sul. A ideia não é bem a do eterno retorno, que pressupõe que a Inglaterra onde o descobridor chega, por engano, ainda é a Inglaterra que ele deixou. É um eterno retorno onde se chega a algum lado.

Não sei se o Sam Mendes leu o Ortodoxia, mas a ideia está no 007 skyfall. Em vez de destacado para as trincheiras distantes que defendem a civilização da barbárie, em vez de afastar a fronteira com o Outro para os mares do sul, o agente secreto traz essa mesma fronteira para o coração de Londres. A barbárie está no próprio coração dos serviços secretos. E esta é uma inovação que me parece fazer todo o sentido, vindo talvez com uns 23 anos de atraso. Gostei.

Wednesday, 21 November 2012

Os pobres enquanto menos ricos

Contava-se muito esta anedota quando eu era pequeno: na escola os meninos têm de escrever uma composição sobre a pobreza, e o menino rico escreve que na casa do menino pobre todos eram pobres - o cozinheiro era pobre, o jardineiro era pobre, o motorista era pobre. Esta visão anedótica - no duplo sentido que a palavra em inglês tem - tem-se revelado surpreendentemente arquetipal nas declarações recentes que a nossa elite - elite, vá, "elite" - tem feito sobre a pobreza (é assim, a crise é como a professora que obriga os meninos ricos a escrever sobre a pobreza). 

Recentemente parece que a CM de Lisboa decidiu que os carros anteriores ao ano de 2000 não podem circular numa zona restrita de Lisboa. Nuno Gouveia, no 31 da armada, escreve, em resposta, que "António Costa não gosta de pobres". Na cabeça desta gente, um pobre é, basicamente, um tipo que tem tudo o que o rico tem, mas tudo o que tem é um bocadinho pior (isto lembra-me Protágoras, mas também o Underground, do Kusturica, onde o rapazito, que passou a vida toda numa caverna, vê uma raia e atira-se à água porque pensa que a é a mulher que se afogou, já que tudo o que conhecia com aquela forma era o véu da mulher com quem tinha casado dias antes): faz férias no estrangeiro, mas não chega às Maldivas, fica em Ibiza; vai à revista, não vai ao S. Carlos; come bifes de frango, não come carne de vaca; tem um cozinheiro, mas o cozinheiro é pobre também. E tem um carro, mas o carro é pior. Na cabeça desta gente, há uma linha integralmente contínua que separa o rico do pobre, uma régua onde a distância entre toda a gente pode ser medida numa unidade monetária homogeneizante (ou seja, não há classes, há indivíduos). É sobre esta régua continua  que a senhora Jonet queria fazer alinhar os pobres: fazê-los transitar da extremidade mais rica para uma mais consistente com a sua riqueza (é tudo um processo de re-ajustamento horizontal: ninguém cai, é só andar um bocadinho para o lado). É também esta a régua, aliás, subjacente aos modelos económicos que estão por detrás dos "processos de reajustamento" baseados na deflação doméstica que os austeritários impõem sobre o país. E é este, também, por fim, o raciocínio do sr. Nuno Gouveia. Como é óbvio, a pobreza é disruptiva, não é contínua. A fome, a vulnerabilidade, a humilhação, a privação, são condições que determinam o rumo da própria vida, não se limitam a torná-la mais difícil ou menos agradável. Um pobre não tem carro, muitas vezes não tem casa, não faz escolhas, e não é afetado pelas políticas do sr. António Costa.

Sunday, 11 November 2012

Welcome to the desert of the real


Depois de a direita ter levado uma abada nas ideias, sequencialmente, de que vivíamos acima das nossas possibilidades, de que o FMI vinha pôr as coisas na ordem e de que a austeridade ia funcionar, seria de esperar que se calassem por um bocado. Mas não. Não só falam, como fazem um vídeo absolutamente medíocre, caricatural, saloio, onde desfilam em trajes menores as ideias que há tão pouco tempo desprezavam. O vídeo fala por si mesmo, não é preciso notar grande coisa, mas acho particular piada ao facto de o mesmo ter como pano de fundo, sempre presente, um monumento salazarista (e terminar no muro de Berlim). 

Wednesday, 7 November 2012

O regresso aos mercados


Encontrei esta imagem no facebook, e lamento não ser capaz de dar os devidos créditos e congratulações a quem a tenha concebido. Penso que é a melhor representação do objetivo último da estratégia económica do governo português, conhecida como deflação doméstica (ou, em realês, empobrecimento generalizado da maioria) em torno do objetivo patriótico do regresso aos mercados. É este, efetivamente, o regresso aos mercados. 

Tuesday, 6 November 2012

água e sabão

Um amigo postou uma imagem no facebook que dizia que 99% da beleza feminina sai com água e sabão. As reações não foram simpáticas. Não sei bem porque é que há esta concepção de que toda a beleza tem de ser natural. Melhor, que a beleza, para ser beleza a sério, não pode envolver esforço - ou pelo menos o esforço não pode ser visível. Verdadeiramente, a ideia não parece nova - não sobraram ruínas de casas de escravos à frente das pirâmides (e o espartilho era coisa que não se via). Houve sempre o cuidado de remover qualquer indício de trabalho à frente de todas construções (bendito Pompidou!). Acho que a novidade não está na necessidade de fingir que não há esforço na construção, mas sim na necessidade de fingir que não há sequer uma construção. Se a brasileira brega põe silicone barato e usa maquilhagem, não merece ser considerada bonita. Mas se uma mulher puder comer bem a vida toda e pagar um ginásio, aí sim, a beleza é natural. 

Toda a beleza é uma construção. Uma construção dos nossos olhos. Ou da maneira como vemos o mundo.